sábado, 19 de outubro de 2013

DIÁLOGOS

Costumo dizer que escrever é uma das habilidades mais difíceis da vida, no entanto, mais prazerosas, gratificantes e belas que existem, principalmente para quem gosta muito de ler, como eu. Sim, amo ler e dar asas à imaginação, por isso escrevo e tenho retomado essa prática há muito adormecida em mim, ou por falta de tempo ou por falta de ideias. Adoro ler, por isso escrevo tanto, porque, quando escrevo, leio a mim mesmo. E quando leio, dialogo comigo, com outros textos, dou vida a outros discursos, concordo com alguns, entro em conflito com outros, reflito, mudo de pensamentos, de comportamento. E mudar de comportamento não significa sempre ser vulnerável, mas ser pensante, analítico, reflexivo, sensível aos problemas da vida, às mazelas sociais etc. E esse espaço nasceu com alguns objetivos, dentre eles denunciar, na maioria das vezes de forma bem humorada, os problemas existentes na sociedade e no ser humano, para, através disso, levar o leitor à reflexão de seus próprios atos e tentar se tornar uma pessoa melhor e tentar fazer uma sociedade também melhor. Além das críticas, o espaço tem também como objetivo a evidência de sentimentos, seja por um lugar, por uma amizade, por uma fase da vida, por um acontecimento, por uma pessoa etc. Também como objetivo desse espaço, os textos levarão às pessoas os dizeres que eu nem sempre posso anunciar pessoalmente. Dessa forma, veremos aqui várias tipologias de texto e de gênero, entretanto, todos com o mesmo objetivo, levar ao leitor alguma mensagem que desencadeie nele uma nova forma de enxergar a vida, pensar no coletivo e ler o mundo e a si mesmo. Todas as minhas publicações aqui serão próprias e jamais publicizadas, embora algumas escritas há muitos anos. Abraço a todos e obrigado pela atenção.

24 comentários:

  1. A colação que não colou

    Escola de tempo integral, EJA, projeto “acelera”, “se liga”, ensino à distância, graduação parcelada, parcerias com empresas privadas e tantos outros projetos e incentivos dos governos federal e estadual à educação pública no país têm sido motivo de muita propaganda, “marketing” e comemoração por parte dos governos e dos beneficiados. E foi em mais uma comemoração de conclusão de curso do ensino médio que um fato inusitado se deu.
    O auditório estava cheio de alunos concluintes do ensino médio de mais um programa do governo estadual. Seus familiares, amigos, vizinhos, parentes mais distantes, a imprensa à convite do governo para divulgar mais uma turma de formandos absolutamente pronta para assumir um raso mercado de trabalho ou para ingressar na universidade, e, é claro, toda a cúpula governamental faziam-se presentes na solenidade.
    A noite seria célebre. O auditório, semi-inaugurado, ricamente adornado com balões metálicos, faixas de parabenização, jarros de flores nas laterais, tapete vermelho ao centro para a entrada dos alunos, ilustrações de grandes pensadores como Sócrates, Descartes, Platão, Einstein, fotos dos alunos em sala de aula, aula-campo.... Tudo muito bem organizado e bonito.
    Para aqueles beneficiados indiretamente (amigos e familiares) o evento cobrava uma importância que se via nas vestimentas. Aos alunos, segue o ritual. Beca impecável, cadeira almofadada de veludo e todos ali ao fundo do auditório, sentados, ao lado da orquestra, é claro, que enriqueceria a cerimônia com sua apresentação.
    Depois da triunfante entrada dos alunos sob muitos aplausos e euforia de todos os presentes, apresentação da banda estadual, inicia-se o rito. Primeiro falam os professores convidados, depois as coordenações da escola, o padrinho da turma e por fim a diretora. Todos com o mesmo discurso, agradecimentos aos alunos, pais, professores e principalmente ao governo que tem investido muito na educação.
    Mas foi após a fala de cada um, inclusive do governador, que o constrangimento apareceu. O governador, após a fala de todos, foi chamado à frente para dizer algumas palavras.
    ____Estamos aqui comemorando mais uma vez a conclusão de um curso. O nosso governo tem trabalhado forte para erradicar o analfabetismo no estado e levar a educação aos menos favorecidos. Tenho a certeza de que todos esses alunos estão prontos para assumir novas vagas de trabalho e contribuir para o crescimento do país. O nosso governo tem investido muito em material, estrutura, qualificação dos professores, salários....
    Depois de um longo e estridente discurso, o governador se virou para trás, apontou para um aluno qualquer e pediu que ele fosse até a frente. Os presentes se admiraram pela atitude do político e se “antenaram” ao que aconteceria.
    O governador, então, entregou o microfone ao aluno, tirou um papel de um dos bolsos do paletó e pediu que o formando lesse o que estava escrito. Todos absolutamente silenciosos e estáticos a ouvir o que o aluno leria. O aluno pegou o papel, olhou, virou de um lado para o outro e colocou à sua frente. Agora sim, ele lerá. Sentia-se o silêncio.
    A ausência de palavras por parte do estudante chamava cada vez mais a atenção dos convidados, que observavam cada vez mais atentos ao que ele iria ler. O governador resolveu, então, incentivá-lo e encorajá-lo. Colocou uma de suas mãos sobre o ombro do formando e disse que entendia a importância e emoção do momento, que também se comovia, mas que ele já poderia iniciar a leitura.
    O jovem aluno olhou novamente para papel, mexeu-o, virou-o e olhou para o governador, que depois disso apresentara apenas um meio sorriso amarelo. O público esperou, atônito. O silêncio prevaleceu. Concluiu-se o mais evidente.
    Fecharam-se as cortinas e a banda rapidamente iniciou qualquer música.

    Murilo M. Narciso.

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  2. Valores

    O embrulho com as mudas de roupas já estava sobre a mesa da varanda. Junto a ele, uma sacola feita de folhas secas de buriti trançadas guardava os poucos agrados a uma sobrinha e à filha desgarrada que se mudara para a capital para adquirir formação.
    Àquela hora, a única luz vinha do céu, a única voz vinha daquele que a natureza incumbira de evidenciar os primeiros passos da lida. O barulho do milho debulhado ao chão inquietava as galinhas e os porcos. Os patos, os marrecos, as angolas... também apareciam para a primeira refeição. Aos cachorros e gansos, amigos mais próximos, cabia a tarefa de zelar por tudo e por todos até o pôr do sol.
    O capim ainda lavava a botina do seu Joaquim, que se afastara passo a passo do seu rancho. Encurvado, com a bagagem nas costas, à frente de Ana, ele caminhava soando um cântico de louvor a Nossa Senhora das Graças e observando as reses no pasto.
    Antes do primeiro raio de sol atingir-lhes o rosto, rumo à cidade grande, na carroceria de um cansado caminhão, eles já dividiam espaço com alguns canavieiros da região.
    Já na cidade, quase no início da meia manhã, a agitação de pessoas, os carros, ônibus, buzina, fumaça, disputa de espaço nas vias e até nos passeios... atordoavam-lhes. O medo de qualquer surpresa os faziam caminhar atentos e depressa. A pouca leitura dificultava o deslocamento, e, para evitar qualquer desencontro com estranhos, preferiam sentir arder no rosto por todo o tempo o sol já quase a pino.
    O primeiro trajeto fora para a casa das meninas. À entrada, perceptível movimento de homens e mulheres a entrar e a sair. Diferentes etnias com acentuada particularidade, as curtas vestimentas e as fortes cores nos rostos das garotas. “As meninas se mudaram”. Agora dividiam outra casa com outras amigas. A informação partira de uma senhora não menos adornada que as raparigas que por ali passavam.
    O segundo, à drogaria mais próxima. Apresentaram ao balconista o nome do remédio a adquirirem para o casal. Por ele, todas as galinhas do sítio e uma porca prenha. Não era possível aquele valor. Mas na primeira era só “apreçamento”. Noutra, mais à frente, iam-se as galinhas, a porca prenha e mais duas latas de banha.
    ____ Mas isso não pode ser, Ana. As economias que trouxemos não pagam nem um, que dirá dois! Tem que ter algum lugar que vende mais barato.
    Já quase no final do expediente solar, com as pernas já trêmulas e o corpo abatido pela caminhada, muito longe de onde foram deixados, a conclusão os faziam silenciar, um no olhar do outro. Era tudo igual. E por coincidência o menor preço fora o da primeira farmácia.
    Desnorteados e com acentuada dor nas costas adentraram, levados pela esperança de um preço melhor, ao último comércio da avenida.
    ____ O doutor mandou comprar esse remédio. Você sabe quanto custa?
    ____ Sei, mas nós temos um paralelo que faz o mesmo efeito e custa menos.
    ____ E quanto custa?
    Não seria possível, o valor era praticamente o mesmo!
    ____ É, mas não é barato não né, moço?
    ____ Sim, senhor, mas existem vários laboratórios que fazem esse remédio, e com preços ainda mais altos.
    Indignado com a situação e uma forte sensação de impotência, não viu a hora que falou:
    ____ E para um colega de profissão, quanto custa?
    ____ Ah, o senhor também é farmacêutico?
    ____ Não, sou assaltante.

    Murilo M. Narciso.

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  3. ótimos textos professor Murilo, gostei muito dos dois :)

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  4. Obrigado, Larissa, vc é muito gentil. Fique com Deus.Abraço.

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  5. Muito bom os textos Professor Murilo,gostei bastante dos dois,principalmente do primeiro...

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  6. Nossa, mando bem em Professor Murilo, gostei de todos o primeiro ainda mais. :D

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  7. Obrigado pelos elogios, pessoal. Espero que, além de terem gostado, que tenham percebido a mensagem que tentei transmitir. Fique com Deus e grande abraço.

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  8. Aurora de áurea

    Hoje trago na lembrança meu tempo de criança,
    as “meninices” a espalhar.
    Brincadeiras de balanço em meio às árvores no quintal,
    correrias e gritarias, com nossa alegria todos se contagiavam.

    Que doce lembrança das brincadeiras saudáveis
    e dos tempos de bonança.
    No pé de laranja subia,
    atrás do abacateiro escondia,
    e quando alguém pegava,
    mais que de pressa corria.

    Quando um brinquedo olhava,
    os olhos se alagavam,
    mas com pouco se contentava,
    e logo um novo brinquedo inventava.
    Carrinhos de madeira e bichinhos até de goiaba
    a felicidade de todos faziam.

    Todos se juntavam,
    e numa só correria
    ganhava quem a latinha chutasse.
    Sempre dava briga
    com os que no pique ficavam
    enquanto os outros se escondiam.

    Na hora do lanche,
    “só um instante,
    não vou demorar,
    não coloque outro em meu lugar”.

    O dia era pequeno
    para tantas brincadeiras fazer,
    não queria parar,
    mas quando alguma mãe apontava,
    a brincadeira na hora acabava.

    Para dormir só bastava encostar
    agarrado a um brinquedo
    para ninguém tomar
    à espera de um novo dia nascer.

    Murilo M. Narciso.

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  9. Outro texto ótimo professor, escreva mais alguns e daqui uns dias quem sabe não sai um livro dessa inspiração toda kkkkkkk , bjos e fique com Deus.

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  10. Nossa muito lindo este poema sobre a infância, professor Murilo.

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  11. Parabéns pelos textos professor Murilo, estão ótimos!

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  12. heheheh! Vcs são gentis demais, meus queridos!!! Na verdade os textos são muito simples, o que evidencia o meu pouco domínio na arte da escrita literária. Mas em todo caso, muito obrigado pelos elogios. Fiquem com Deus e grande abraço. Vcs são excelentes alunos e pessoas.

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  13. Vida de dor e esperança

    Naquela terra seca, trincada, sem nenhum sinal de vida,
    Já se cultivou de tudo, até parreiras.
    Podia ver no semblante daquela gente tudo que restou,
    Muita tristeza, falta d’água e lá na beira do açude
    Uma ossada ainda no último suspirar de vida.

    A vida trava com a morte uma batalha cruel,
    O terço à mão é a única tarefa do dia.
    E naquela terra onde já se deu de tudo, até leite e mel,
    Hoje só tem fome, pobreza e esperança que vem do céu.

    O dia não passa e a fome não cessa,
    A criança chora, a mãe se desespera.
    O tempo parece parar, nada a fazer,
    Ninguém pra esperar.

    O açude há tempo secou,
    O gado de sede morreu,
    A criança de fome um dia chorou,
    Também morreu.

    Parece filme, ou será castigo?
    Realidade tão cruel não há.
    Não há água, não há comida, não há vida,
    Não há o que fazer, se der tempo, só esperar.

    A voz mais alta vem do silêncio
    Acompanhando de um olhar vago e envergonhado.
    Todos se olham, nada a falar,
    Parece por alguma coisa esperar, só podem esperar.

    A noite traz companhia,
    Mas nem os adultos podem mais aguentar,
    A dor e a tristeza são chagas constantes.
    A morte esqueceu de nos buscar.

    A noite não pode acalmá-los,
    A fome não deixa o sono se aproximar
    E vai ferindo todos com aquela dor
    Que ultrapassou o corpo, maltratou a dignidade,
    Feriu a esperança, machucou a honestidade.

    Só daquela terra lembrar,
    Salivo o amargo da vida,
    Mas peço pra Deus nosso senhor
    Não deixar eu,
    Pra lá um dia voltar.

    Murilo M. Narciso.

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  14. Mais um ótimo texto professor Murilo :)

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  15. Muito bom esse texto professor Murilo !

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  16. Obrigado pela gentileza, meninas, vcs são muito gentis e educadas. Obrigado tb pela ativa participação no blog. Vcs são duas personagens importantes desse espaço, afinal, vcs sempre contribuem com bons e relevantes comentários, além, é claro, de serem ótimas alunas. Fiquem com Deus. Abraço para vcs..

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  17. Muito obrigada Professor Murilo fique com Deus também...

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  18. Santa imoralidade

    A avenida era uma das poucas da cidade. Ficava próxima à praça central, onde ficava também a igreja matriz. Árvores de médio porte, alguns banquinhos de madeira, canteiros ajardinados, floridos e amplo espaço com grama. Refletores com cansadas luzes testemunhavam um ou dois casais a namorar nos finais das tardes de domingo. Também próximo um pipoqueiro à espera de seu público, comum à missa. Relativo fluxo de trabalhadores que diuturnamente passavam pela avenida, na porta da igreja, à entrada ou saída do trabalho na única grande empresa da cidade. Pela avenida, passavam donos e funcionários do comércio local, fregueses, fiéis, trabalhadores etc. Todos num ir e vir no ritmo da cidadezinha.
    O tempo é calmo, é lento, é vagaroso. As pessoas se observam, batem papo. Senhoras tricotam à sombra das gameleiras nas portas de suas casas. Senhores disputam partidas de dominó nos banquinhos da praça. As crianças brincam nas calçadas, as janelas espiam o movimento das ruas. Ora ou outra passa um pipoqueiro. De vez em quando um carroceiro. Às vezes um picolezeiro ou um pamonheiro. Um carro é atração, todos param, todos olham. Nasce o sol, a cidade acorda. Os transeuntes movimentam as ruas, as conduções aceleram o ritmo do trânsito sobre as ruas de pedras já soltas e gastas pelo tempo. O idoso caminha para a padaria, as crianças seguem para a escola. Donas de casa varrem as calçadas, os comerciantes à porta esperam seus fregueses. Ali também observam o movimento calmo da cidade até o sol se pôr.
    Certo dia, como todos os outros, anoiteceu. O comércio baixou as portas, as janelas das casas se fecharam, as crianças das ruas saíram, a iluminação pública acordou, a cidade silenciou-se, o galo deu seu primeiro sinal. Fora uma noite quieta, tranquila e calada como sempre. A manhã acordara, as pessoas às ruas, as crianças, os idosos, alguns comércios, os fregueses... Tudo exatamente como de costume. No entanto, a manhã acordara com uma peça fora do lugar. A princípio nenhuma novidade, a não ser o traje e os acessórios daquele que pouca atenção obteve de todos que por ali passaram naquela manhã de domingo. O local em que estava, sua posição, sua aparência, sua presença, nada chamara mais atenção do que seus objetos. Todos que por ali passaram naquela manhã, à missa, à feira, à padaria... mostraram-se impassíveis ao corpo, a não ser um cachorro que logo que viu o homem estendido no chão foi fazer-lhe companhia.
    O dia passou, o sol se pôs, a missa acabou, a cidade calou. Pessoas foram e voltaram como de costume. O único a velar o sono de todos, inclusive do corpo, era o cachorro que, desde o início, não fora recebido com xingamentos e pontapés pelo homem caído na calçada por onde todos passavam. A cidade adormeceu, mas na segunda-feira tudo começou outra vez, todo o movimento, todas as idas e vindas, todos os fregueses, todas as crianças, todos os idosos, todos os trabalhadores... No entanto, o corpo, na companhia do cachorro, continuava no mesmo lugar. Mais um dia e nenhum estranhamento por parte de ninguém, nenhuma pergunta, nenhum questionamento, nada mudou a não ser o homem caído na calçada que logo após a primeira missa da segunda-feira se apresentava com uma peça a menos, o chapéu.

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  19. CONTINUAÇÃO

    Na terça, tudo novamente, o mesmo movimento, as mesmas pessoas, os mesmos fatos, os mesmos olhares, as mesmas indiferenças e o mesmo homem caído na calçada, a não ser com mais uma peça a menos novamente, desta vez o paletó. E o cachorro lá, ao seu lado, amigo fiel, inseparável. Era ele que às vezes dividia com o homem um pedaço de pão seco, um pedaço de carne estragada ou outra coisa qualquer. Na quarta, novamente os fatos se repetem, e desta vez levaram os calçados. E assim foi a semana toda até na segunda seguinte, após a missa, quando uma multidão se formou ao redor do homem que já se apresentava somente de cueca e com uma pasta executiva, ao lado de seu inseparável amigo. E todos que por ali passavam paravam para ver o que estava acontecendo, e logo tomavam partido a favor daquelas pessoas que se diziam insultadas por aquela pornografia descarada no meio da rua. Os moradores mais próximos foram os primeiros a ver o tumulto feito por aqueles que saíam da igreja.
    –––– Não podemos aceitar essa pouca vergonha, essa imoralidade na nossa cidade. Isso é uma afronta a todos os princípios morais e religiosos que tanto cultivamos.
    –––– Chamem o padre para excomungar esse pervertido.
    –––– Chamem o delegado para prender esse tarado.
    –––– Chamem o prefeito para limpar essa rua.
    A cidade parou, a imprensa chegou. O “evento” ganhava a cada minuto mais repercussão. Aqueles de opinião contrária à maioria tentavam resolver a situação de forma mais humana e diplomática, mas eram silenciados pela grande maioria enfurecida que exigia providência de todas as autoridades da cidade para que aquele homem fosse retirado imediatamente daquele lugar e que pagasse por seus atos. No entanto, nenhum daqueles da multidão fora capaz de perceber que o homem estava morto. Morrera há pouco. O cachorro, encolhido e sentindo-se ameaçado pela multidão, deitou-se em seu peito. Depois de horas de discussão sobre quem poderia fazer o quê, impuseram ao prefeito que este levasse o homem de qualquer jeito.
    –––– Seu delegado, chame seus homens, vamos prendê-lo.
    Mas assim que colocaram as mãos no homem, perceberam que ele estava morto. A atitude agora seria outra, mas ainda oriunda do prefeito que pegou seu telefone e fez uma ligação.
    Após alguns minutos, encostou o caminhão de lixo com dois homens, duas pás e alguns sacos pretos.
    A pasta por alguns instantes ficara nas mãos do prefeito que logo após ver o que tinha dentro mandou também que a colocasse junto ao corpo. Eram clássicos da literatura grega.

    Murilo M. Narciso.

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  20. José de quê?


    Véspera de natal, final de expediente em uma avenida de comércio popular na capital. Trânsito parado, ônibus, caminhões e carros de passeio à espera de uns poucos metros a mais nas longínquas filas da avenida. Nas calçadas, milhares de pessoas com suas sacolas, caixas, móveis, pacotes, eletrodomésticos, portáteis... disputam lugar com os camelôs, os pipoqueiros, os anunciadores nas portas das lojas de produtos em promoção, os papais noeis, as árvores e todos os enfeites de natal, os panfleteiros, os carregadores de mercadorias, os vendedores de picolés, os de churrasquinho, de água, de pastel, garapa, doces, balas, óculos, relógios e até os ciclistas e motociclistas que se arriscam ora ou outra naquele lugar.
    Enquanto muitos caminham lentamente nas calçadas, outros aguardam parados na avenida o momento de partir e outros ainda se arriscam “costurando” o trânsito com suas motos e bicicletas. A esses falta a paciência para esperar e o bom senso para evitar um acidente. E lá do fim da fila que sumia de vista veio um motociclista com um garupa disputando espaço com os carros e ônibus à sua volta. Cortava um, cortava dois, tirava fino de mais alguns, esbarrava em um retrovisor, em mais outro, apertava a buzina, soltava um palavrão, subia na calçada, avançava o sinal, acelerava forte, freava brusco etc. Até que em um dos cruzamentos o sinal fechou e o espaço se afunilou para o motociclista que ao cruzar a via deu de cara com um caminhão carregado de cimento. Foram os dois pro chão.
    Iniciou-se o espetáculo, formou-se a multidão. Parecia brotar pessoas do chão tamanho era o número de curiosos. “Bem feito para esse motoqueiro estúpido”, diziam alguns. “Chamem uma ambulância”, diziam outros. Inúmeras pessoas com seus aparelhos celulares filmando ou tirando fotos. O que já era lento parou de vez. O piloto da moto ficou caído na faixa de pedestre desacordado, o garupa, sonolento. Não demorou muito e uma viatura da polícia apontou em alta velocidade no final da fila com a sirene ligada. Como não bastasse o barulho da sirene para os demais veículos darem passagem para a polícia, a viatura entrou na contramão e todos os policiais, com exceção do motorista, ficaram com a metade de seus corpos para fora do carro berrando aos quatro ventos, uma mão empunhada de grosso calibre e a outra batendo na lataria do veículo para todos abrirem caminho.
    Quando a viatura chegou ao local do acidente, ao descer, um dos policiais deu um tiro para cima para dispersar a multidão. Outro, com o pé, constatou o estado de dormência do piloto. Enquanto o comandante da viatura pedia para o garupa se identificar, os demais policiais se colocavam em posição de tiro apontando as armas para os feridos. O garupa apresentou sua identidade ao comandante e disse que seu amigo não portava nenhum documento de identificação, mas que se chamava José Washington da Silva. “Temos que registrar a ocorrência”, disse o policial. Chamou um colega e pediu o bloco de anotações. Pegou a caneta e deu início ao preenchimento dos dados. Anotou o nome do garupa, seus dados pessoais, placa da moto, placa do caminhão, dados do motorista etc, etc, etc. Após quase uma hora de preenchimento do formulário, o policial voltou-se para o garupa e perguntou novamente o nome do piloto. “José Washington da Silva, senhor”. O policial se retirou, caminhou até a viatura, chamou um colega, eles conversaram por instante e o policial chamado saiu da viatura fazendo sinal de negação com a cabeça. O policial chamou então outro colega que após alguns segundos também saiu da viatura balançando negativamente a cabeça. Assim fez com os três colegas e o resultado fora o mesmo.
    ...
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  22. CONTINUAÇÃO

    Enquanto isso chega uma ambulância para levar os feridos ao hospital. E, em acordo com o policial responsável pela execução do Boletim de Ocorrência (BO), o motorista da ambulância dissera que os acidentados só poderiam ser retirados do local após o preenchimento do formulário. Então o policial chamou pelo rádio outra viatura para dar apoio. Da mesma forma, todos os policiais da segunda viatura foram chamados pelo policial da primeira e todos saíram balançando negativamente a cabeça, inclusive o primeiro superior hierárquico do policial responsável pelo BO. O primeiro superior, por também não conseguir o término do formulário, chamou outra viatura de apoio e um segundo superior. O segundo superior chegou ao local com seus subordinados e também foram indagados pelo policial responsável pela ocorrência. Não havendo sucesso, o segundo superior chamou por rádio outro superior para resolver o problema. Enquanto esperavam a chegada do terceiro superior, constataram que o piloto havia morrido. Após um tempo, chega o terceiro superior com seus subordinados e o veículo do Instituto Médico Legal (IML). Novamente todos entram na discussão, mas ninguém consegue terminar o preenchimento do formulário. A essa altura, já havia quatro viaturas, uma ambulância para acidentados, uma ambulância do IML, dezesseis policiais e seis socorristas. A calmaria já tomava conta da avenida, o silêncio às vezes era quebrado pelo som de algum veículo que passava por ali , as lojas adormeciam, os cachorros procuravam comida nos latões de lixo, os gatos namoravam.
    Durante muito tempo ficaram à espera de um novo superior capaz de terminar o preenchimento do formulário, e assim aconteceu até a chegada do último superior na hierarquia da polícia. Quando já estava lá toda a cúpula da polícia e sem nenhuma resolução, perceberam que o garupa havia fugido enquanto os policiais discutiam a conclusão do BO. Já com os primeiros ônibus a iniciarem suas corridas, os primeiros trabalhadores a saírem de casa e todos sem saber como terminar o registro, o líder de todos eles deu uma ordem. “Levem o corpo, montaremos uma CPI para resolver esse problema”. Trinta dias depois, uma lápide é colocada em um túmulo do cemitério municipal com a seguinte identificação: José .... da Silva.

    Murilo M. Narciso.

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